Quando Moisés desceu a montanha do Sinai, trazendo nas mãos as duas tábuas do Testemunho, sim, quando desceu a montanha, não sabia que a pele de seu rosto resplandecia porque havia falado com Ele.
Ele se equivocou quando verteu o versículo para o latim, traduzindo raios de luz (o resplandecimento) por chifres de luz, já que a palavra hebraica karan pode significar raios ou chifres.
O desapreço estético contra a presença dos chifres na arte cristã se dá pela distância histórica que temos em relação à concepção que os antigos atribuíam ao elemento visual. Portanto, como vivemos em uma época em que o "chifre" possui conotação perjorativa (demônio, vítimas de infidelidade etc.), há uma repugnância imediata por parte dos não iniciados nos estudos da cultura semítica.
Acredito que os confrades já resolveram a questão, mas posso contribuir com algo, mesmo sendo redundante em muitos aspectos. Julguei pertinente separar minha postagem por tópicos, para garantir uma melhor organização das ideias:
1) Comentário bíblico da tradução da Vulgata em Ex 34, 29-35
2) A luz, como símbolo antropológico e religioso do conhecimento superior
3) A importância do chifre na cultura dos povos da Antiguidade
4) A importância do chifre na Sagrada Escritura
6) Conclusão
7) Bibliografia
"34,29-35 Moisés se expôs à luminosidade esplendente, a glória do Senhor, e a luz o transfigurou sem que ele o notasse. Seu rosto tornou-se luminoso, com luz refletida. Tudo o que diz é ressonância de Deus, do mesmo modo que sua luminosidade é reflexo de Deus. O esplendor é como um halo que emoldura o oráculo e o mediador. O fenômeno se repetirá, não já na montanha, mas na tenda do encontro."
Que nos parece? Schökel não parece ter interesse na questão das representações artísticas, mas somente no texto em si mesmo e expõe uma teologia bíblica interessante. Por mais que Moisés fosse como um de nós ("imagem" e semelhança de Deus, como em Gn 1,26), sua exposição à santidade e presença de Deus o fez ainda "mais semelhante". Tal atestado, apesar de desconcertante à primeira vista, pode ser associado à própria vida dos santos: sua adesão à Deus era tal que faziam milagres, curavam doentes, se "transportavam" de um lugar para outro como Jesus, se resplandeciam de luz, como luz do mundo etc. Como? Para quem intensifica o contato com o próprio Deus, intensifica também sua semelhança.
Como Deus é "luz", o contato de Moisés com Deus e sua exposição à luz divina, refletiu o que Deus é nele mesmo: LUZ!
O verbo "resplandecer", que ocorre somente neste capítulo, é um denominativo do substantivo "clarim". A Vulgata traduz por cornuta ("chifre" em latim), que posteriormente tornou-se a fonte das representações artísticas de Moisés com chifres em sua cabeça. Richard J. Clifford (2007, p. 159) comenta que, na realidade, o brilho em sua face expressa seu lugar privilegiado como servo íntimo de Yahweh, o que confirma a dissertação de Schökel.
2) A LUZ, COMO SÍMBOLO ANTROPOLÓGICO E RELIGIOSO DO CONHECIMENTO SUPERIOR
Pela lógica da expressão, essa luz divina, guia da moralidade, não é interior, mas brilha diante dos olhos do homem (cf. Sl 19,9), embora o lugar de assimilação da Palavra só possa ser o coração. Por isso, no caso, a expressão pertence mais ao símbolo (i.é., ao campo simbólico) do que à metáfora.
2º O segundo nível é o dos mistérios do mundo criado, inapreensíveis para o comum dos mortais. Esse conhecimento, sapiencial também, provém, contudo, de uma iluminação do coração de origem transcendente. Daniel, penetrado do “sopro do Deus santo”, possui “luz, inteligência e sabedoria como a sabedoria de Deus” (Dn 5,11.14; cf. também 2,22). Os três termos, sinônimos (hendíadis), situam claramente o conhecimento do jovem no registro da ciência, se bem que se trate de ciência infusa. Por isso, a metáfora se abre mais para o símbolo. O caso de Moisés, o sábio, o homem da Lei por excelência, tão transformado por seu encontro com o Senhor que, segundo a tradição recebida, sua iluminação interior transparecia por fora: “a pele de seu rosto brilhava”, de modo que ele teve de cobri-lo com um véu (Ex 34,29-30.34-35).
Figuras rupestres do norte da África mostram carneiros e búfalos que trazem a esfera do sol entre os chifres. A deusa do céu Hátor traz na cabeça o chifre de rez com a esfera do sol. Na arte da mesopotâmia antiga, as divindades são ornadas com a coroa de chifres, como que símbolo de seu poder supraterreno. Na época do helenismo, governantes faziam cunhar sua imagem com testa coroada de chifres em moedas.
Os animais portadores de chifres em larga escala são considerados como símbolos de fertilidade. Assim, também o chifre é sinal de abundância (cornucópia), da hospitalidade, da generosidade, da paz e da esperança; em representações das partes do mundo é símbolo da Europa e da África. Segundo o Dicionário dos Símbolos: imagens e sinais da arte cristã (HEINZ-MOHR, 1994, p. 96), também é atributo do profeta Jonas e da Sibila délfica.
Enquanto o Senhor ergue o chifre do seu povo (Sl 148, 14), abater-se-á o chifre de Moab (Jr 48, 25), ou seja, o seu poder será desbaratado. "Ele corta o chifre dos ímpios, mas o chifre do justo será erguido" (Sl 75,11). O próprio Senhor é designado, no cântico de ação de graças depois de batalha com êxito, como chifre de salvação (Sl 18,3). Como sinal especial de poder divino de bênçãos eram considerados os chifres de metal dos quatro cantos do altar dos perfumes da Tenda da Reunião (Ex 27,2; 30,2).
Também junto do altar dos holocaustos que estava no templo salomônico "se levantavam quatro chifres" Ez 43,15). Aspergindo os chifres com o sangue dos animais sacrificados se queria indicar a doação de vida a Deus de modo particular. Já Aarão e seus filhos receberam, por ocasião de sua consagração como sacerdotes, a ordem: "Tomarás parte do sangue do bezerro e com o dedo o porás sobre os chifres do altar" (Ex 29,12). Terrível castigo é quando o Senhor corta os chifres do altar e estes caem em terra (Am 3,14). Quando um acusado, fugia para o templo e tocava nos chifres do altar, colocava-se sob a proteção de Deus e era salvo — caso não tivesse cometido nenhum crime premeditado (1Rs 1,50-53).
Na semiótica da arte cristã, entra também a ideia simbólica dos chifres que Moisés trazia ao vir de novo para junto do povo depois do encontro com Yahweh no Sinai, irradiante um poder espiritual quase atemorrizante, como já comentei em Ex 34,29.35.
Não obstante termos aí uma falsa maneira de ler texto bíblico latino que se acha na base dessa interpretação¹, pode-se reconhecer e é legítima a interpretação simbólica que lhe subjaz.
O chifre como instrumento de sopro encontra-se também em anjos do Juízo Final e como atributo de São Brás e São Cornélio, ambos os casos com base em jogo de palavras (no alemão, blasen = soprar e no francês, cor). Um chifre de caçador portam São Eustáquio, São Humberto e São Osvaldo.
No entanto, recorrendo às antigas configurações, também o diabo recebeu na arte e na fé popular uma série de traços animalescos, entre os quais sobressaem os chifres que frisam o poder do mal (daí a repulsa de muitos em aceitarem os chifres na arte cristã de bom-grado, por causa da sua associação com o retrato do demônio).
Mas, de todas as representações de Moisés ornado de chifres, a mais conhecida é mesmo a escultura de Michelângelo (que, no caso dele, reproduziu erroneamente Moisés por ter-se se servido da tradução latina da passagem bíblica hebraica de Ex 34,29ss). Como já foi exposto alhures, não eram chifres que saíam de sua face (facies cornuta), mas raios (facies coronata).
Sabemos, portanto, das qualidades simbólicas que, tanto da luz quanto do chifre, serviram para transmitir mensagens teológicas importante para nós e para os povos de todas as épocas que esses elementos estiveram presente.
Mesmo assim, não podemos e nem devemos depreciar as várias representações de Moisés com chifres, seja na pintura, seja na escultura, pois a configuração artística deste equívoco da Vulgata fala, porém, tanto mais da força de expressão do antigo símbolo, pois que se acreditava reconhecer no fato dos chifres de Moisés a força transmitida a ele por Deus.
Esta é uma bibliografia básica e não tem a intenção de ser exaustiva, muito menos de abordar todas as vertentes semióticas, filológicas, artísticas ou exegéticas que o tópico suscita. A quem se interessar, pode consultar as referências que os autores abaixo se serviram para maior aprofundamento.
BÍBLIA. Português. SCHÖKEL, Luís Alonso. Bíblia do Peregrino. Trad. Ivo Storniolo; José Bortolini. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2006. p. 170.
CLIFFORD, Richard J. Êxodo. In: BROWN, R. E.; FITZMYER, J. A; MURPHY, R. E. Novo Comentário Bíblico São Jerônimo: Antigo Testamento. São Paulo: Academia Cristã; Paulus, 2007. p. 159.
GIRARD, Marc. Os Símbolos na Bíblia: ensaio de teologia bíblica enraizada na experiência humana universal. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2005. p. 148.
HEINZ-MOHR, Gerd. Chifre. In: ______. Dicionário dos Símbolos: imagens e sinais da arte cristã. Trad. João Rezende Costa. São Paulo: Paulus, 1994. pp. 96-97. (Série Dicionários)
LURKER, Manfred. Chifre. In: ______. Dicionário de Figuras e Símbolos Bíblicos. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2006. pp. 51-52. (Série Dicionários)
¹ Que traduziu os raios, de que o texto fala, por "chifres" — facies cornuta em vez de facies coronata — um erro que só foi corrigido pelo Concílio de Trento no séc. XVI e até então marcou as representações de Moisés até o Moisés de Claus Steler na fonte da Kartause Champmol (fins do séc. XIV) e a imponente representação de Michelângelo no mausoléu do papa Júlio (S. Pedro in Vicoli, Roma).
Naturalmente que lá na comunidade os dons e conhecimentos de cada um são diferentes, de modo que tive de perguntar a Otávio qual seria um conceito de semiótica. Ele, sempre solícito, respondeu o seguinte:
1) "A semiótica é a ciência dos signos e dos processos significativos (semiose) na natureza e na cultura" (NÖTH, 2003, p. 17);
2) É a "ciência dos signos" (SANTAELLA, 1983, p. 7; SANTAELLA, 2008, p. XI);
3) "É a ciência geral de todas as linguagens" (SANTAELLA, 1983, p. 8) ou
4) É a ciência geral "de toda e qualquer linguagem" (SANTAELLA, 1983, p. 10).
Etimologicamente, o termo Semiótica provém do grego Σημειωτικός (Sēmeiōtikós, numa transliteração mais exata) e é a junção de dois outros vocábulos: σημεĩον (sēmeĩon) que quer dizer “signo” (NÖTH, 2003, p. 21; SANTAELLA, 1983, p. 7) ou Σημα (Sēma-), um radical que tem por significado “sinal”, que pode ser traduzido por “signo” também (NÖTH, 2003, p. 21) e ωτικός (ōtikós = ótica).
Infelizmente, nem sempre, no decorrer da história da semiótica, houve consenso sobre o uso da sua etimologia (NÖTH, 2003, p. 21-22). De acordo com Winfried Nöth (2003, p. 21), a palavra Semio- é “uma transliteração latinizada da forma grega semeîo-, e os radicais parentes, sema(t)- e seman-, têm sido a base morfológica para várias derivações de vocábulos que dão nome às ciências semióticas” (NÖTH, p. 21).
Apesar de Charles Sanders Peirce (1839 – 1914) ser o filósofo cuja obra percorreu “todas as áreas da filosofia e, além disso, quase todas as ciências do seu tempo” (NÖTH, 2003, p. 60), e que — sozinho — dialogou com “25 séculos de tradição filosófica ocidental” (SANTAELLA, 1983, p. 27), ele nunca usou o termo plural inglês semiotics (NÖTH, 2003, p. 22) para designar a “ciência de toda e qualquer linguagem” (SANTAELLA, 1983, p. 10), preferindo – ao invés disso – vocábulos como semeiotic, semiotic e até semeotic (NÖTH, 2003, p. 22).
Então, basicamente a semiótica é a ciência que se dedica ao estudo geral de todas as linguagens e processos significativos. E eu a uso aplicada à arte cristã e à exegese católica.
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
NÖTH, Winfried. Panorama da Semiótica: de Platão a Peirce. 4ª ed. São Paulo: Annablume, 2003.
SANTAELLA, Lúcia. O que é Semiótica. São Paulo: Brasiliense, 1983.
______. Semiótica Aplicada. São Paulo: Cengage Learning, 2008.
SANTAELLA, Lúcia; NÖTH, Winfried. Imagem: Cognição, semiótica, mídia. 4ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2005.
Esta alcunha de “filósofo”, como também de “cientista”, é atestada por Max H. Fisch (apud SANTAELLA, 1983, p. 26) e por Santaella (1983, p. 22, 24), apesar dele não ter sido reconhecido em seu tempo nem por filósofo, nem como cientista (SANTAELLA, 1983, p. 24), mas somente após a sua morte (SANTAELLA, 1983, p. 24).